quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Maio de 1968 em Curitiba

Curitiba - O ano de 1968 foi marcado por manifestações históricas em todo o mundo. Milhares de pessoas tomaram as ruas do Norte ao Sul do globo. Os jovens paranaenses daquela época, não ficaram de fora. Foi naquele ano que eles impediram que o ensino pago se instalasse na mais antiga instituição de ensino superior do país, a Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Os jovens se uniram para protestar contra os acordos entre o Ministério da Educação (MEC) e a United States Agency for Internacional Development (USAID), que tinham como objetivo declarado o aperfeiçoamento do modelo educacional brasileiro. Para os universitários de todo o país, no entanto, os acordos eram um caso de ingerência internacional nos assuntos educacionais brasileiros, o que, para eles, era inaceitável.

Os acordos foram o estopim para manifestações públicas contra a ditadura militar que havia se instalado no Brasil em 1964. Em Curitiba, o foco de luta dos estudantes era a realização do vestibular para o curso noturno de Engenharia, primeiro curso pago da UFPR e a instituição do pagamento de anuidades. A inovação era herança do MEC-USAID e enfurecia o movimento que defendia a universidade pública e gratuita.

A briga entre movimento estudantil e a universidade começaria a esquentar no Dia das Mães. ''Lembro bem da data porque quem não foi preso saiu da invasão para ir almoçar com a mãe'', lembra Luiz Manfredini, na época uma liderança do Movimento Estudantil Livre (MEL). Para impedir a realização do vestibular, os estudantes invadiram o Centro Politécnico, ocuparam as salas e tornaram inviável a aplicação das provas. O teste foi adiado. Muitos vestibulandos, animados pelas lideranças estudantis, aderiram ao movimento.

Dias depois, novamente os estudantes enfrentaram a polícia (leia nesta página). Quinhentos jovens se envolveram numa batalha campal com mais de mil policiais nas ruas próximas ao Campus Politécnico. Em menor número, muitos ficaram feridos ou foram presos. Decidiram, então, invadir o prédio da Reitoria, na rua XV de novembro. ''Viemos de todas as partes e tomamos o prédio de repente'', lembra Clair Flora Martins, aluna do curso de Direito da Federal. O movimento foi planejado em uma reunião secreta no Centro Acadêmico de Medicina. ''Quem participou da reunião, não pôde deixar a sala, para que a informação não vazasse e a polícia frustrasse nossos planos'', conta Manfredini.

Estudantes universitários e secundaristas estavam convocados a se reunir na Praça Santos Andrade a partir das 7 horas. Oficialmente, os manifestantes seguiriam em passeata até o Politécnico. ''Mas depois do confronto violento com a polícia nos últimos dias, as lideranças do movimento decidiram que aquele dia teria que ser diferente'', relata Manfredini. O plano, delineado em segredo, era levar os estudantes para a reitoria e tomar conta do prédio.

''Durante a noite, o governador Paulo Pimentel enviou um emissário até os estudantes. Queria oferecer um avião para que pudessemos ir à Brasília, negociar diretamente com o ministro da Educação'', revela Manfredini. ''Tinha pavor que houvesse um confronto no Paraná, que algum estudante fosse morto'', explica o ex-governador Paulo Pimentel.

O grupo não estava disposto a conversa. Queria agir. No início da manhã, três mil jovens compareceram à manifestação. ''Seguimos em dois blocos, uma pela XV de Novembro e outro pela Amintas de Barros e fechamos as ruas em torno do prédio'', relata. Tomaram o prédio de assalto. Eram 8h. Barras de ferro foram usadas para arrancar as pedras de paralelepípedo das ruas e construir barricadas. Nas mãos e nos bolsos, muitos estavam armados com estilingues, pedras e bolas de gude, que seriam usadas para derrubar os cavalos.

A cavalaria da PM também enfrentaria uma artilharia de rojões, destinada a assustar os animais e derrubar seus cavaleiros. Carros que circulavam pela região foram tomados pelos estudantes. ''Colocamos panos nos tanques de gasolina. A idéia era explodi-los caso houvesse um confronto com a polícia'', diz. As idéias incendiárias dos manifestantes não pararam por aí. Líder dos secundaristas, Manfredini coordenou a produção de coquetéis molotov. As bombas seriam jogadas nos carros-pipa dos bombeiros, que eram utilizados na repressão a manifestações.

Dentro do prédio, milhares de estudantes aguardavam com calma o desfecho daquele dia histórico. O clima, diz Manfredini, era de companheirismo e festa. ''Alguns jogavam cartas, outros namoravam'', conta. Clair lembra bem da principal atitude tomada pelos estudantes naquele dia histórico. ''Derrubamos o busto do reitor''. A estátua de Flávio Suplicy de Lacerda perdeu o nariz e uma orelha.

Rosiane Correia de Freitas
Equipe da FOLHA

Busto de reitor foi arrastado pelo Centro
Do alto de um prédio no Centro de Curitiba, um estudante, munido com um rádio comunicador, avisou os colegas na reitoria de que a reação iria começar. De todos os lados, a Companhia de Operações Especiais da PM, a infantaria e a cavalaria chegaram para pôr fim na invasão. Os estudantes se viram cercados, mas não se intimidaram. Centenas de jovens gritaram para os policiais militares: ''Você que é povo também entre nessa luta que é do povo''. A esperança era convencer os jovens armados de que o objetivo dos estudantes, manter a UFPR pública e gratuita, também interessava a eles. Ninguém levou o convite dos manifestantes a sério.

De um telefone público, o presidente da União Paranaense dos Estudantes, Stênio Salles Jacob, ligou para o governador e o alertou: ''Se houver repressão, o senhor vai entrar na história como assassino de estudantes''. ''Não lembro se foi isso que ele falou, mas o caso era que não queríamos um confronto'', diz o ex-governador Paulo Pimentel. ''Pedi que se tentasse um acordo'', lembra. O responsável pela negociação foi o secretário de Segurança, o desembargador José Munhoz de Mello.

Poucas horas depois, Pimentel recebeu do Exército a informação de que tropas federais seguiriam para a Universidade. ''Achavam que a PM estava sendo muito 'mole' com os estudantes. Foi quando pedi aos estudantes que deixassem o prédio, uma vez que o movimento já tinha conseguido que suas reivindicações fossem parcialmente atendidas'', conta.

Já Luiz Manfredini diz que os estudantes deixaram o prédio porque foram informados por Mello de que o diretor da Faculdade de Engenharia, Ralph Leither, havia concordado em não abrir a matrícula do curso noturno até que se conseguisse a gratuidade do curso.

O secretário também teria se comprometido a retirar as tropas da PM e a não prender ninguém. Os estudantes deixaram o prédio e seguiram em passeata até a praça Osório, levando arrastado o busto do reitor. ''Quando o Exército invadiu o prédio, uma hora depois, não encontrou ninguém'', conta Pimentel. Poucos dias depois, o Conselho Universitário extinguia o pagamento de anuidades na UFPR. (R.C.F.)

Uma pedra no meio do caminho
No dia 9 de maio, numa ladeira perto do Centro Politécnico, o estudante de medicina José Lopes Ferreira tomou uma atitude que iria marcá-lo para o resto da vida. Disposto a lutar contra o pagamento de anuidade na UFPR, Zequinha, como era conhecido, seguiu com outros jovens estudantes para mais uma manifestação. As armas que eles empunhavam eram típicas de garotos: estilingue, bolas de gude e pedras.

Naquele dia, o estudante se viu frente a frente com a cavalaria da Polícia Militar. Os policiais seguiam dispostos a impedir a ação dos estudantes. Numa imagem imortalizada pelo fotógrafo Édison Jansen, do jornal O Estado do Paraná, Zequinha sacou do bolso seu estilingue e atingiu em cheio o capacete de um dos policiais. Deixou o militar atordoado. Em seguida, fugiu escada acima para se refugiar em uma casa da vizinhança. Como cavalo não sobe escada, se viu livre, escondido no interior de uma residência.

Aquele ato de rebeldia contra a repressão foi parte do fim do combate aberto ao poder instituído. Dali para frente, a ditadura só iria endurecer, se tornar mais violenta. E a luta pela liberdade se tornaria clandestina. Em dezembro de 1968, a ditadura abandonava a máscara e assumiu o fim da liberdade ao instituir o Ato Institucional Número 5, que fechava o Congresso Nacional, suspendia os mandatos, autorizava a intervenção nos Estados e Municípios, o confisco de bens, tornava legal legislar por decreto-lei, impedia a realização de reuniões políticas, suspendeu o habeas corpus para presos políticos e aumentou a censura. (R.C.F.)

Nenhum comentário: